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para quem se sente só: um saco cheio de sol

  • Foto do escritor: Luiza Freitas
    Luiza Freitas
  • 28 de mai. de 2023
  • 6 min de leitura

Atualizado: 31 de mai. de 2023

[por Luiza de Freitas]

(fragmento de uma experiência do SorverVersos)


19/05

uma coisa sai do lugar

e assim, dá lugar à outra coisa

fora de lugar


é melhor estar no lugar errado

ou em lugar nenhum?


o oco não é lugar nenhum

mas o fora de lugar

dentro de um lugar

escondido



Não brincava de esconde esconde, me sentia sozinha. Pensava que a brincadeira ia acabar sem ninguém me encontrar. Eu ficaria ali... escondida para sempre. Talvez ainda esteja. Por isso me sinto assim, tão oca.


27/05

Estou lendo a Recusa do Não-Lugar de Juliano Pessanha há algumas semanas. Leitura lenta, como sempre. De acordo com o Kindle, li 22% do livro, mas muita coisa tem me acontecido nesse contato inicial. O livro tem me sussurrado coisas que ainda estão penduradas no lóbulo da orelha. Como brincos. Tenho escrito como quem veste e desfila longos lânguidos brincos por aí - de cabelos presos, para deixá-los bem à mostra.


29/05

Coloco aqui fragmentos avulsos de anotações penduradas no lóbulo da orelha. A defesa e o contra ataque aos arrebatamentos. Junto disso, a citação da Lygia Clark. Tem encontro que bota um ovo na gente, ou como diria a cantora e compositora Cátia de França, "engravida" a gente. É o que parece ser o caso aqui: fragmentos de um engravidamento oco, um ovo chocado a cada morte, e o que nasce e o que morre tem a ver com uma constante fome de saber como - minha deusa, como? - habitar, viver e caber no mundo.



19/05

O corpo oco é o fora do mundo. O que vive para dentro. Aquele que não canibalizou a mãe. Que cuspiu o leite materno. O corpo oco é o anti-ventriloquo. A anti-materia de uma existência corpulenta. Uma coisa meio aérea, meio lunar.


Meu corpo oco é entre mundos. O que vive na borda. Aquele que arrancou o bico do peito e mastigou feito chiclete. Até grudar nas gengivas inflamadas. Meu corpo oco é o anti-ventrículo. A materia de uma anti-existência corpulenta. Uma coisa meio areia, meio lunática.




26/05

Tenho plena convicção de que meu oco é um ovo. Dele há de chocar. Hei de germinar. Ocazinha.

Um tipo de poema talvez nasça, ele também oco.

É como se houvesse um encantamento logo de nascença: serás oca. E nada que toco me mantém. Nada que me toca me abraça. O útero estourou. O seio secou. O berço era frio. E a janela cantava um outro mundo, Fora…

Mentira,

Nasci grande e gorda. Nutrida. Depois de Dentro do útero, meu primeiro lar, morei em uma casa cheia de colos. Alguma coisa sempre me fez me sentir inadequada. Foi quando conheci o oco. Quando fico de Fora do jogo. No entanto, sempre houve teto. Cama, luz, presença. Minha vida oca, na verdade, sempre esteve povoada. Muitas vezes, lotada. Congestionada. Meu Dentro talvez fosse justamente o fora de lugar dentro de lugar nenhum.


27/05

Escrevo na borda dos dias, pinicando na pele um amargor de uma falta - um oco. Brinquei na terapia que tenho me sentido como uma adolescente. Na adolescência, um tanto, mas na vida toda vamos construindo a demarcação daquilo que faz da nossa pele o manto que nos protege do mundo e, ao mesmo tempo, a superfície que nos coloca em contato com o mundo. Para se entender com esse encaixe e desencaixe, é preciso viver na pele as feridas, invasões, machucados, remédios, pomadas, escudos, espinhas, cobertores térmicos... E por aí vamos criando cascos, calos, cócegas, córregos e cantos do corpo que nos permitem viver isso.

Infelizmente, questionar-se sobre como habitar, viver e caber no mundo, não é exclusivo da experiência da adolescência. Quero crer que construí repertórios e experiências que me permitem complexificar a vontade de ser vista, reconhecida, aceita, pertencente.

Tive a chance e o medo de ir vivendo na medida da borda, sempre na fronteira do Fora e Dentro, não é à toa que esse tipo de reflexão nunca me deu sossego. Uma rebeldia meio conservadora, uma introspecção festeira, amizades meia bomba, a ascensão social na adolescência, e o jeito que criei de habitar o mundo pelas coxias... Tudo meio mais ou menos, nem aqui e nem ali.

Hoje, com quase 28 anos me vejo escorregando para Fora com apenas a ponta dos dedos no lado de Dentro. E os ouvidos colados no furo me permitem experienciar de camarote o Dentro, sem saber muito bem como participar.

É como tenho me sentido: dentro de (um) lugar nenhum. Tenho me comparado com as pessoas, competido em silêncio, me defendendo da diferença, me enfiando em fôrmas... Tenho reproduzido auto-violências. Forçado a barra contra o meu desejo e desistindo do que quero sempre no último segundo. Tenho encontrado manchas na pele, inflamações e coceiras. Meu contato com o Dentro tem sido... alérgico.


Ao mesmo tempo em que, inevitavelmente, estou Dentro: do globo terrestre, de um país, de uma constituição, de uma ética compartilhada, de um conjunto de códigos, de uma teia de privilégios (branca, família classe média, coisa e tal), e e e e., também vivemos em um momento coletivo, de mais individualismo, no qual estamos sempre fadados a nos sentirmos de algum modo de fora do mundo. Essa sensação de despertencimento constante, de inadequação, é o trunfo capitalístico para o movimento obsessivo em direção dos objetos (de consumo), serviços (de consumo) e milagres (de consumo) que nos façam nos sentir dentro (do consumo). No entanto, é um dentro ilusório do qual ninguém realmente faz parte. O que nos torna parte não é consumível: o encatamento provocado de um bom encontro pode ser convertido em produto ilusóriamente - isso tem sido feito já há um tempo -, mas a experiência do encontro é de uma espontaneidade ímpar, meticulosa e aleatória, impossível de se reproduzir e vender.



26/05

Em roda, no umbigo, espumas do mar aconchegam uma história. Um corpo boiando no mar conta uma história. Um grão entre grãos de areia da praia conta outra história. Eu, desarmada, diante do escuro, conto outra história. Nós, cantando uma canção da infância, contamos outra história.

Sim. Tive a sorte de ter irmãs. Três. A verdade é que nunca estive sozinha. No sentido de desamparo. Talvez tenha sido o medo de deixar a outra em desamparo que tenha nos tornado espuma… um pouco espuma, micro-ondinhas, pequenos Dentrinhos, estamos sempre em busca de uma solidão contornável. Bolhas estourando singelas.

Lá em casa, sempre teve abrigo. Teto. Comida. Fartura: não sobrava muito, mas nunca faltou nada de essencial. As lanças vinham arremessadas pelo lado de Fora.

E o Fora era o Dentro. Dentro do mundo.

Logo cedo, me lancei no corte. As lanças me espetaram, sangraram, até enfim, me rasgar em duas. Fora-Dentro, Dentro-Fora: o dentro é o fora e o fora é o dentro. Vazio pleno. Ocazinha, nasci e renasci na borda todas as vezes em que me lancei.


A vida talvez seja mesmo assim: se lançar no corte. Rasgar-se. Não para se estilhaçar e ser apenas espuma. Mas para decompor e recompor em lascas nas dobras do mundo. Dentro. Não há como fugir do Dentro. Podemos choramingar que viemos ao mundo sozinhos e assim partiremos… mas isso é uma mentira. Estamos acompanhados desde a semente, nascemos de um corpo, tomados pelas mãos de outro corpo. Passamos de colo em colo. Nos alimentamos de corpo. E até a morte é um corpo a corpo eterno e constante. E até na morte, até depois da morte, estamos acompanhados de vermes, fungos, bactérias e diferentes formas de vida. Então, não quero mais me sentir a solitária do alto de uma torre - que nem mesmo alcanço - fadada ao oco da solidão por ser assim, muito diferente, e apartada no mundo. Estou no mundo, Dentro. Sou apenas a expressão repetida de discursos inconsoláveis acerca de um mundo em torpor individualista e fatalista. Ser sadio parece ter a ver com dar um passo para o lado de dentro. Um parto para Dentro.




27/05

Eu sou minha própria semente querendo germinar no mundo. Tenho tentado reencontrar meu lugar no mundo - com a consciência de que esse lugar não existe: sou eu quem está parindo meus modos de viver. A germinação precisa de terra, adubo, água, sol. Precisa de cuidado e precisa de tempo. É processo contínuo e partilhado. Minha singularidade não é definida a partir de um descolamento radical das pessoas, mas de uma composição caótica e vibrante com quem encontro e me filio e desfilio. E foliamos, desfolhamos, fofocamos, fornicamos, esfolamos e floreamos.

Um sem fim de bolhas, espumas, ondas, globos oculares, globos terrestres, seios e tatu-bolas.


29/05

Um jeito que encontrei para me sentir menos oca foi olhar para o buraco. Meu umbigo, depois de um mergulho no mar, guardando um pedacinho dele ali, quando me deitava na canga de corpo molhado. A pocinha no umbigo não significa nada para o mar. Eu não significo nada para o mundo. Eu não caibo no mar quando mergulho, mas um mar cabe em mim quando me deito. Tão logo, a poça d'água no umbigo evapora. Sempre posso dar o próximo mergulho. Eu não significo nada para o mundo; eu não caibo no mundo quando sou parida, mas o mundo me coube num útero, num braço, num beijo, num sorriso, num assento de ônibus, numa canção, num coletivo, ...


Não me sinto menos oca. Olho para o buraco. Taco fogo. Tasco um beijo. Arranco um teco. E sigo o jogo...


26/05

Vou cultivando a semente, até que arrebente o saco cheio de sol.



 
 
 

1 Comment


Jéssica Costa de Macedo Soares
Jéssica Costa de Macedo Soares
Jul 14, 2023

"Ser sadio parece ter a ver com dar um passo para o lado de dentro. Um parto para Dentro." - Achei fantástico! Ressoou demais por aqui.

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